Pai, em tuas mãos me entrego
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Pai, em tuas mãos me entrego
“Era já mais ou menos a hora sexta quando houve treva sobre a terra inteira até à hora nona, tendo desaparecido o sol. O véu do santuário rasgou-se ao meio e Jesus deu um grande grito: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’. Dizendo isso, expirou” (Lc 23,44-46).
Na porta estreita, passamos um de cada vez, não passamos em grupo, passamos sozinhos.
Nesse momento, é-nos exigido ficar face a face e responder por nós mesmos.
Cada pessoa confronta-se com o que é, nenhum outro passa por nós,
encontrando-nos com os nossos limites e a nossa transcendência.
Assim acontece no nascimento e na morte
e em alguns momentos decisivos da nossa vida.
Embora sejamos ajudados pela comunidade, nenhum outro pode assumir o nosso lugar.
Nestes momentos, experimentamos a nossa liberdade
e a nossa condição de ser únicos.
E mesmo passando sozinhos, somos levados na comunhão de uma força maior
que nos abre o caminho da realização.
No nascimento, a força da vida nos faz nascer.
Na morte, a força de uma liberdade maior nos conduz
para uma vida de grande transcendência.
A grande transcendência exige rupturas com o aqui e agora da existência.
Contemplando a morte de Jesus, caminhamos dentro do Mistério de Deus,
Mistério que é Amor, e que em Jesus assume e atravessa a dor, o sofrimento
e o sem sentido da vida humana, para darmos sentido a todos os momentos
da nossa existência, desde o nascimento até à morte.
Colocamos esse amor de entrega total da vida de Jesus,
como princípio, meio e fim de nossa vida.
Também nossa vida é mistério que se revela quando se deixa revelar
e assumir pelo Mistério do Amor de Deus.
Quando a Tua vida atravessou a minha vida,
e eu senti a minha morte na Tua morte,
percebi que a vida tem um sentido só: a Tua vida.
A morte é esse momento extraordinário e solene
em que o agora se vai e a transcendência acontece em toda a sua verdade.
Sintamos o calafrio de pegar a nossa vida nas mãos em toda a extensão do nosso ser.
Coloquemos diante de Deus, Trindade Santa,
este nosso momento de plena individualidade, identificação,
definição do eu, e entrega definitiva ao mistério da vida.
Somos no ser de Deus, no amor infinito de Deus.
Deixamos tudo o resto e compreendemos isto:
somos no Deus que É; somos porque Deus É.
Deixamo-nos envolver pelo amor infinito de Deus.
Quando chega o momento de tomar a vida totalmente nas mãos,
o nosso ser estremece, porque o momento nos transcende e nos escapa.
A morte é um momento de grande concentração de ser.
As energias do ser e do não ser se reúnem, se reconciliam. Tudo se entrega aí.
Por isso, a morte é um momento privilegiado da vida,
momento de passagem, de grande transformação.
A morte é o encontro da vida, de todas as energias da vida.
Não fosse a morte e não veríamos tudo reunido num só.
“Tudo está consumado”.
Somos convidados a perceber os nossos processos de morte.
Mas, não vamos descer sozinhos, vamos descer com Jesus, na sua morte.
Ele desceu aos infernos, à mansão da morte.
Ele desceu às raízes do pecado da Humanidade e assumiu as suas consequências.
Ele carregou as nossas dores.
Prostremo-nos por terra e sintamo-nos com Jesus na sua morte,
neste momento de grande solidão e abandono
que pertence só a mim e que a mim me faz abandonar na comunhão da fé:
“Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?”
“Se o grão de trigo não morrer não dará fruto”.
Há situações na nossa vida em que o melhor que podemos fazer é “beber o cálice”.
Não adianta fugir ou ficar chorando ou ficar se lamentando;
o melhor é encarar, como Jesus fez, na fidelidade ao Pai
e no amor à libertação do povo.
Daí surge a graça, a auto transcendência em Deus, a libertação,
o desprendimento, a alegria de uma entrega generosa
até ao ponto de dar a própria vida, o próprio ser:
“Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
Na morte de Jesus, vemos a consumação do processo de separação,
porque Deus é tudo em Jesus: “tudo está consumado”.
Jesus morrendo, entrega-se radicalmente ao Pai e à salvação da Humanidade.
Nada da vida de Jesus está fora do processo do ser de Deus, na sua morte.
Com a nossa morte acontece a mesma coisa: nada fica de fora,
tudo é entregue a Deus e ao processo do amor na História, na comunhão de Deus.
Deus toma conta de nós de uma maneira total.
Ao longo da vida vamos sendo convidados a experimentar separações,
“quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”;
mas na hora da morte, tudo o que somos se entrega.
Ser = Separar-se = Perder = Perder-se, para Encontrar-se.
Este é o processo de transcendência que nos constitui,
puxados pela força da presença de Jesus na História, agora ressuscitado.
Todos os dias nos separamos de coisas e de pessoas,
até do dia e da noite que passaram por nós, nos separamos de nós mesmos.
O que permanece é o mistério que nos habita e nos faz ser.
Jesus, para ser Ele mesmo, saiu do interior da Trindade,
do mundo afetivo de Maria e de José, de sua casa, do ambiente de Nazaré,
do contexto religioso, social e político do seu tempo,
e de seus amigos e discípulos
e, na morte, a grande separação, assumiu a vida total do seu ser,
num grande encontro de reconciliação e comunhão de tudo o que é criado,
no ser de Deus.
Neste momento, prostramo-nos por terra,
deitamo-nos com Jesus na sua morte.
Adoramos Jesus amor pleno.
Rezamos a entrega de Jesus que doa sua vida,
carregando as nossas dores, os nossos pecados, as escravidões que oprimem a humanidade,
as explorações e ultrajes à dignidade humana.
Unimo-nos com Jesus na sua morte e pedimos-lhe que leve consigo
as nossas dores, os nossos pecados, as nossas faltas de fé e de confiança.
Procuramos perdoar e perdoamos.
Que a morte de Jesus lave o nosso ser e nos deixe livres, cheios de vida.
Pedimos que nos conceda a graça de assumir a nossa vida
com tudo o que ela tem de pesado, desafio e sofrimento.
Entregamos para Jesus o que não podemos carregar.
Assumimos os nossos limites.
Diante da morte de Jesus sabemos que viver é morrer e que morrer é viver,
momentos diferentes da mesma Vida.
Entregamos todo o nosso ser nas mãos de Deus,
num grande gesto de confiança e abandono.
Deixamos Deus ser a Rocha da nossa vida,
A verdade mais profunda que está em nós.
A morte de Jesus é o ponto mais alto dos “desertos” da sua vida.
Nela Jesus declara: só Deus é Deus.
Nada fica fora do seu coração criador. Ele toma conta de tudo o que criou.
É um Deus que morre de paixão pela humanidade.
“Vede como o Pai nos amou, ao ponto de nos dar o seu próprio filho”.
Rezamos “Meu, Senhor”, em adoração ao Deus de amor
que assume a nossa vida de maneira total.
Rezamos, repetindo muitas vezes, e entregando o nosso ser nas mãos de Deus,
a nossa vida nas mãos de Deus.
Deixamos Deus ser o Deus da nossa vida.
Pe. José Luís, CSh