A cor da cinza e outras cores da Quaresma

Compartilhamento

A cor da cinza e outras cores da Quaresma

 

 A quarta-feira de cinzas abre-nos as portas deste tempo litúrgico da Quaresma. Deixamos que a nossa fronte se turve com a cor esbatida da cinza. É escura e triste esta cruz de pó que o ministro do altar traça no alto das nossas cabeças. Durante a celebração inteira e no caminho de casa deixamos que este barro que nos lembra o que somos, nos acompanhe em silêncio.

A primeira água que jogamos em nossas cabeças irá apagar outra vez esta cruz cinzenta de pó queimado. Até à próxima Quaresma. Mas permanecerá em nós a marca indelével de termos, outra vez, recordado o mistério da nossa fragilidade. “Lembra-te que és pó e que ao pó hás-de voltar!” ou “Converte-te e acredita no evangelho!” ecoam no interior como chama que atiça um convite que a Quaresma tão bem consegue recordar.

A cinza obriga-nos a olhar para dentro do peito e a deixar implodir todos os desejos de grandeza, de posse, de prestígio que este tempo se encarrega de estimular. O brilho de tantos desejos fugazes rende-se à simplicidade desta pobre matéria queimada, esbatida, cinzenta – barro e pó.

A cor da cinza não é a cor da Quaresma. A cor da cinza é a cor do coração abatido e do vaso de barro esmoucado que habita cada ser humano e lhe recorda a sua condição. A cor da cinza, é a cor de tantas vidas secas, queimadas, desalentadas. É a cor de tantos desafios escondidos em sepulcros que ainda não viram a luz, mas a desejam em silêncio e prece.

A cor da cinza é a cor de rostos e vidas cinzentas, mendigando justiça, igualdade, liberdade de ser e dignidade. A cor da cinza confunde-se com os rostos apagados de tantos irmãos e irmãs que viram seu desejo de fraternidade sucumbir diante da violência, da intolerância e da miséria. A cor da cinza é a cor de florestas queimadas e de povos enganados por desejos de lucro fácil e desmedido.

Mas a cor da cinza rebentará em tons de liberdade e de festa quando a luz pascal invadir o mais cinzento dos olhares e o mais desafeto coração e se revelar a força motriz que incendiará tudo. A vida que a terra esconde no frágil grão de trigo irá semear o verde da esperança em todos os caminhos. Em encontros e olhares. Transformando vidas e quotidianos, esbatidos como a cinza, em cores desencarceradas.

A própria cinza há-de transsubtanciar-se em alegria e comunhão. Em partilha desassossegada. Há-de levantar altares e reacender fogueiras apagadas e juntar na mesma roda os irmãos desavindos e os povos que um dia ergueram muros. Essa cinza soprada por um vento novo há-de transformar-se em Pâscoa verdadeira e encher de vida os campos de ossos esmagados da história humana.

Deixar-se atravessar por esta melodia de esperança que já invade todos os desertos e os transforma em terra semeada e habitada, é o convite que a cor da cinza dirige a cada coração.

Junte-se à cinza que impomos em nossas cabeças e que nos toca com a sua profecia o toque igualmente profético da Palavra em ritmo quaresmal. Este toque há-de reinventar a vida que somos e o caminhar nas trilhas de nossos quotidianos. Junte-se também o toque e o olhar de alguém que a fome de encontro ou de proximidade, de justiça, de fé ou de pão nos deserda de tantas seguranças e nos obriga a outras partilhas.

Junte-se ainda aquele toque de abertura ao Espírito que conduzirá ao longo de quarenta dias e vida fora,  o desejo de brotarem nascentes  no deserto que somos. Espalhando à sua passagem o frescor de um serviço desinteressado, - expresso de mil maneiras a inventar-, de uma disponibilidade que não se vende, de um compromisso com o Reino que não se deixa tolher por cansaços escondidos e por confinamentos impostos ou necessários.  

Deixar-se conduzir pelos caminhos deste tempo favorável da Quaresma, em busca da verdadeira Luz Pascal, é estrada de conversão que agora iniciamos. Na liberdade de sermos filhos dessa luz, deixaremos que um grão de trigo irrompa e ofereça vida. E espalhe nas leivas do mundo outras sementes e outras cores que não apenas a cor esbatida da cinza que carregamos.

Pe. Afonso, CSh

Veja o ultimos artigos da Comunidade

Acompanhe nossas redes sociais

Siga-nos pelo Facebook

Siga-nos pelo Instagram

Acompanhe nosso canal no Youtube